É como uma  possibilidade de renascimento, mesmo que de forma rápida, volátil ou até artificial, características de nossos tempos”, explica professora da UCS

por William Marin*

As Inteligências Artificiais (IAs) prometem solucionar ou, pelo menos, amenizar, o desgaste que o tempo impôs sob diversos tipos de registros audiovisuais. Entre as muitas promessas feitas pela inteligência artificial, a recuperação de mídias se coloca cada vez mais como uma opção viável e menos como um desafio. 

O recente caso da restauração de uma música inédita dos Beatles é um exemplo do sucesso de uma parceria: o homem e a máquina. George Harrison, Ringo Starr e Paul McCartney reunidos gravaram a parte instrumental da canção.  A contribuição dos vocais de John Lennon veio diretamente de uma fita k7 gravada no começo de 1980, pouco tempo antes de ter sido assassinado. Sua viúva, Yoko Ono, entregou a fita para George Harrison, mas a qualidade da gravação sepultou as esperanças da ‘última música dos Beatles’ ver a luz do dia.

Antes do surgimento das inteligências artificiais, as possibilidades de recuperação de um arquivo eram limitadas, demoradas e com resultados parciais. O novo método de recuperação que possibilitou ‘Now and Then’, título da faixa musical, finalmente migrar do k7 para as plataformas de áudio se chama ‘Machine Learning’, aprendizado de máquina, em uma tradução literal.

 Ou seja, essa inteligência é capaz de aprender, reconhecer e reproduzir padrões, como a voz de John Lennon, por exemplo. Entre os problemas da gravação original estavam ruídos do ambiente, o que inclui uma televisão ligada ao fundo e a posição do microfone que registrou em alto e bom som o piano, mas não fez o mesmo bom trabalho com as vocais de Lennon, que ficaram em segundo plano.

 A Inteligência Artificial conseguiu dividir em faixas separadas o som do piano, o barulho da televisão e os vocais. A partir daí, foi possível criar uma cópia fiel da voz de Lennon.

Lucas Taufer, doutorando de filosofia na Universidade de Caxias do Sul  (UCS), destaca que a restauração de arquivos por meio da inteligência artificial é, em certa medida, a continuação de um longo processo que vem desde as origens da própria humanidade.

“O desenvolvimento técnico e artístico acompanha o ser humano desde os primeiros passos que demos. Agora temos em mãos uma ferramenta poderosíssima para tentar fazer coisas novas, como a criação de novos instrumentos, obras de arte, etc. É a possibilidade de encontrar certas respostas”, afirma Taufer.

O pesquisador ressalta que, “mesmo que seja de cunho generativo”, a IA “sempre produzirá coisas a partir de uma base de dados e de um modelo que está instalado nela”. Nesse, sentido, a tecnologia é “fundamentalmente humana”.

“Você precisa fornecer a matriz algorítmica pela qual ela processará os dados e também a base de dados que ela acessará, ainda que sejam enormes. A validade do que será feito com inteligência artificial estará sempre relacionada ao grau de responsabilidade com que as pessoas a utilizam, assim como qualquer ferramenta”, afirma Taufer.

 Nem todos tem a mesma sorte que ‘Now And Then’. Possuir a gravação na íntegra, mesmo que em baixa qualidade, já é meio caminho andado. Existem obras audiovisuais que não possuem um frame sequer registrado. São as chamadas “lost medias”, as mídias perdidas em uma tradução livre.

Elas podem ser perdidas parcialmente, em caso de terem algum material preservado, ou inteiramente, se não houver nenhum registro para contar história. ‘Cleopátra’, filme mudo de 1917 é um exemplo clássico de lost media. 

Estrelado por Theda Bara, é considerado um dos filmes mais elaborados da carreira da atriz. No entanto, suas cópias se perderam em dois incêndios: parte delas no acervo da Fox em 1937 e o restante no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 1958. Dele, menos de três minutos de filmagens foram recuperadas até o atual momento. 

 Para casos como estes, a luz no fim do túnel não está tão próxima assim.  No entanto, recursos como o “deep fake”, que também é uma forma de inteligência artificial, consegue captar movimentos, expressões, vozes e projetar em outras pessoas. 

Em seu especial de 50 anos, o programa ‘Fantástico’, da TV Globo, decidiu recorrer a este recurso para recriar, com base no roteiro original que estava preservado, a sua edição de estreia que havia sido perdida com o tempo.

No entanto, recursos de Inteligência Artificial que prometem restaurar registros perdidos a partir da criação de imagens proveniente de uma base de dados pode ser considerada uma alternativa válida? Para Ivana Almeida da Silva, doutora em Práticas Culturas e Culturas da Comunicação pela PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e professora da Universidade Caxias do Sul (UCS), sim.

“No caso da restauração de filmes considero uma possibilidade válida, pois podemos  fazer, em alguma medida, com que paisagens, cenários e pessoas possam ganhar uma nova vida nas telas. É como uma  possibilidade de renascimento, mesmo que de forma rápida, volátil ou até artificial, características de nossos tempos”, explica Silva. 

“Vivemos uma época que a arte afasta-se cada vez mais de sua existência única e adquire outras funções e a IA nos aponta alguns caminhos interessantes para reflexão”, acrescenta. 

 Mas, como apontado por Taufer, para a inteligência desenvolver qualquer material, é preciso que ela receba uma detalhada base de dados, portanto, podemos dizer que a recuperação de arquivos neste formato não é um trabalho exclusivo da inteligência artificial, mas um trabalho feito em dupla entre o homem e a máquina.

*Material produzido na disciplina de Oficina de Webjornalismo do curso de Jornalismo da Universidade de Caxias do Sul. Professora Paula Sperb. 2023/4.

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