O retrato de quem vive a infância de um só, mas carrega o mundo dentro de si
Por Rayane Ribeiro
Durante décadas, o conceito de família esteve associado à casas cheias, crianças correndo pelos cômodos, barulhos, risadas e disputas pela atenção dos pais. No entanto, com o passar do tempo, essa ideia vem ganhando novos contornos. Cada vez mais casais optam por ter apenas um filho — uma escolha que se torna comum e representativa dos novos modelos familiares brasileiros.
Segundo dados de 2021 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a taxa de fecundidade — que representa a média de filhos por mulher — vem diminuindo ao longo dos anos, alcançando o índice de 1,76 filhos por mulher.

Com famílias cada vez menores, cresce o número de filhos únicos, uma realidade marcada por muitas vantagens, mas também por desafios vividos de perto por quem ocupa esse lugar. Crescer sem irmãos pode significar mais tranquilidade, atenção e oportunidades individuais, como também, pode trazer momentos de solidão e a necessidade de aprender a lidar com a própria companhia.
A psicóloga Michele Rech afirma que ser filho único pode influenciar no desenvolvimento social e emocional, mas não determina como a criança será, podendo haver influência de fatores dentro do contexto familiar. “Sem irmãos, uma criança pode ter menos oportunidades de aprender a compartilhar, negociar e lidar com frustrações, experiências que são comuns em lares com mais de um filho.” ressalta.

Compensando a ausência
A falta de irmãos na infância pode ser suprida por outros membros do círculo da criança, como primos, amigos e até mesmo, uma atenção mais afetiva dos pais. Brenda Basso, 21 anos, relembra como foi crescer sozinha, mas rodeada de afeto.
“Meus pais sempre foram muito presentes na minha infância. Em certo momento, quis muito ter um irmão ou irmã, mas justamente por ter uma relação de muita proximidade com minhas primas, hoje considero-as como irmãs.” relembra.
Michele explica que relações horizontais (iguais em idade e poder), são fundamentais para o desenvolvimento social. Quando uma criança convive com amigos, primos ou colegas, ela aprende sobre cooperação, limites, empatia e frustração, as mesmas habilidades que irmãos ajudam a desenvolver.
Relação entre pais e filho (a)
Com apenas um filho, os pais costumam nutrir uma relação mais próxima e em muitos casos, mais intensas com os mesmos. Não tendo a divisão de atenção, esse vínculo costuma ser marcado por uma convivência constante, diálogo frequente e um envolvimento emocional mais direto.
Henrique Tramontina, de 31 anos, acredita que a relação com os pais foi bastante influente. “Toda a atenção se voltou para mim, sinto que meus pais acabaram me mimando bastante. Até mesmo nas conversas que temos hoje, acabo sendo um porto seguro para eles, já que hoje eles são mais velhos e dependem mais de mim em alguns aspectos.” conta.
Ainda assim, é possível observar que há uma expectativa muito grande por parte dos pais em relação aos seus filhos, o que acaba gerando uma pressão, que muitas vezes, impacta no emocional dessa criança na vida adulta.
Gustavo Pretto, de 24 anos, conta como foi lidar com essa pressão.
“Foi gerada muita expectativa sobre mim, desde cuidar da casa no sentido de tomar as decisões, quanto na pressão em tirar um 10 na escola por conta de que em casa não faltava nada. Me trouxe efeitos que até hoje em alguns momentos eu não sei lidar.”
Júlia Richetti, psicóloga, especializada em sistêmica familiar, explica que na maioria das vezes, a superproteção e a transferência de expectativas têm relação com a própria experiência de paternidade ou maternidade daquele pai ou daquela mãe. Muitas vezes, refletem a forma como eles próprios foram criados, incluindo questões de superproteção. “É fundamental que os pais compreendam que os filhos seguirão caminhos e farão escolhas diferentes das suas.” afirma.
A decisão de ter apenas um
Ter apenas um filho pode ser resultado de diversos fatores: dificuldades na maternidade, questões financeiras ou até mesmo uma decisão pessoal. Para Gislene Macagnan, a escolha por ter apenas um filho sempre fez parte do seu planejamento de vida. Mãe de Matias, de 5 anos, ela relata como foi essa decisão.
“Desde sempre, eu já tinha em mente que queria ter apenas um filho. Senti que essa seria a minha forma de viver a maternidade de maneira plena e equilibrada. Quando o Matias nasceu, essa certeza se confirmou. Eu me senti completamente realizada como mãe e não senti a necessidade de aumentar a família. Ele preencheu tudo de uma forma muito especial e natural.”
Gislene afirma que além de sua decisão pessoal, alguns outros fatores também influenciaram sua escolha. “Além do emocional, pensei muito na parte física, pois tive meu primeiro filho aos 35 anos. Além disso, pesou também a questão prática da rotina de trabalho, do tempo e da vida corrida. E claro, a parte financeira também conta, sempre pensamos em poder oferecer ao Matias uma boa educação, experiências, viagens e atividades que agreguem à formação dele — e com dois seria muito mais difícil ter essa mesma qualidade de vida.”
Novo padrão familiar
Embora cada vez mais presentes na sociedade, famílias com apenas um filho ainda enfrentam o preconceito.
“A sociedade ainda tem aquela ideia de que ‘filho único sofre’ ou que ‘irmão é essencial’, e nem sempre respeita escolhas diferentes. Muitas vezes já ouvi perguntas como ‘mas não vai dar um irmãozinho para ele?’ como se fosse uma obrigação. Mas eu encaro com tranquilidade porque sei que essa é uma decisão certa para nossa família.” conta Gislene.
Para o historiador e professor de sociologia, Anderson Martins, ter apenas um filho, é o novo padrão familiar. “As famílias estão preocupadas com o sustento e uma vida com mais conforto, o que torna-se mínimo para sobrevivência. Com um alto custo para viver por conta da escassez de dinheiro e baixos atrasos, a opção é reduzir a família.”
Ele ainda analisa como isso impactará no futuro: “O impacto será através das relações interpessoais, pois haverá falta de homens/mulheres, levando a um aprofundamento nas redes sociais com relacionamentos virtuais, o que muitas vezes pode ser fictício e estereotipado, aumentando a solidão e também, muitas vezes a depressão.”
Para a vida adulta
Partindo do pressuposto de uma infância independente, a vida adulta sente esses reflexos. Ser filho único, muitas vezes é assumir uma maturidade mais cedo, mas também, possuir uma visão de base familiar que acolhe, apoia e gera conforto em meio à correria do cotidiano.
Para Brenda, o exemplo familiar é presente desde a infância: “Meus pais sempre foram meus exemplos de vida e de profissional. Hoje, procuro seguir os passos deles em vários aspectos: carreira, relacionamento e modo de pensar.” afirma.
Já para Henrique, a base familiar é um pilar fundamental na vida do ser humano: “Como filho único, com os pais presentes e afins, acabamos idealizando isso também para vidas nossas. A importância para uma base familiar sólida e presente, nos faz pensar, a longo prazo como filhos únicos, de uma forma mais solitária, visto que assim que perdemos nossos pais, seremos ‘sozinhos’, ou até mesmo no momento de cuidar deles na velhice.”
Júlia ressalta que os impactos na vida adulta tendem a gerar mais questionamentos para filhos únicos, como o fato do envelhecimento dos pais. Não ter com quem dividir questões como essa, acaba gerando certas preocupações e aflições. Porém, ela ressalta que ter irmãos, não significa um planejamento assertivo sobre o futuro.
Crescer como filho único pode apresentar desafios, mas também oferece oportunidades únicas de desenvolvimento pessoal e emocional. Laços familiares tornam-se referências importantes para aquela criança que eventualmente se tornará um adulto. Ao mesmo tempo, a ausência de irmãos ensina a importância da autonomia, da reflexão e do convívio. Cada experiência se torna singular, mostrando que a qualidade do vínculo familiar e o cuidado no desenvolvimento emocional tem mais peso do que a quantidade de filhos.
Foto de capa: Rayane Ribeiro/Arquivo pessoal
Produzido na disciplina Webjornalismo da professora Janaína Kalsing do curso de jornalismo da UCS.


