Entre o discurso da flexibilidade e a falta de benefícios, trabalhadores relatam o impacto de um modelo que transfere riscos e enfraquece direitos
Por Tainá Dall’Agnol
Jean da Silva Oliveira, 26 anos, é designer e trabalha como pessoa jurídica desde 2018, atuando em diferentes áreas do marketing digital e da comunicação. Ele enfrenta as incertezas e os desafios de um setor em constante transformação, e a crescente pejotização é uma delas. Jean faz parte de uma geração que se profissionalizou em meio à crise e à digitalização do trabalho, e que enxerga nesse modelo a única porta de entrada para exercer a profissão.
Desde que começou a atuar por conta própria, Jean se vê em um mercado que muda em ritmo acelerado. “A maior dificuldade pra mim é acompanhar o mercado, principalmente depois que as IAs se popularizaram”, conta. Ele relembra o período em que trabalhou nos modelos de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): “Tive uma experiência CLT, mas nem cheguei a assinar a carteira. Trabalhei num restaurante, escala 6 por 1, na época fazia faculdade de gastronomia e o salário não pagava nem um terço da mensalidade. O local de trabalho era insalubre e explorador, eu levava três horas pra ir e três para voltar. A experiência foi tão ruim que nunca mais quis trabalhar nesse regime”, explica.
Entre freelas e novos aprendizados, ele tenta se reinventar para continuar competitivo e driblar a instabilidade de trabalhar como PJ. “A vantagem que vejo nesse modelo é a liberdade de horários e de produção, principalmente na minha área, que é totalmente home office” acrescenta o designer.
Da exceção à regra
Ahistória de Jean não é isolada. Ela reflete uma tendência crescente no mercado de trabalho brasileiro: a pejotização. O termo define a prática de contratar profissionais como pessoa jurídica (PJ), em vez de assinar a carteira pelo regime da CLT. Na prática, isso significa abrir mão de garantias como férias remuneradas, 13º salário, FGTS e INSS, já que o profissional passa a ser considerado prestador de serviço, e não funcionário. Enquanto o modelo CLT oferece estabilidade e proteção social, a pejotização transfere para o trabalhador todos os custos e riscos do negócio — inclusive o de ficar sem remuneração em períodos sem contrato.
O debate sobre o tema ganhou força nos últimos meses. Segundo levantamento do JC UOL, houve um aumento de 57% nas ações trabalhistas pedindo o reconhecimento de vínculo empregatício. Em abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu suspender todos os processos no país sobre pejotização até que a Corte defina parâmetros para esses casos, uma medida que afeta diretamente trabalhadores que tentam reverter contratos.
O fenômeno, no entanto, não é recente. A pejotização se intensificou após a Reforma Trabalhista de 2017, que flexibilizou vínculos e ampliou as possibilidades de contratação fora do regime da CLT. A mudança prometia modernizar as relações de trabalho e gerar empregos, mas acabou impulsionando o avanço de modelos precários, nos quais o trabalhador assume responsabilidades que antes cabiam às empresas.
Para a professora e especialista em Direito do Trabalho Adriane Pereira Lopes, o problema vai além do aspecto legal. Ela descreve o mercado como etarista e incapaz de valorizar a experiência profissional, em que “funcionários acabam fazendo o papel de PJ, trabalhando no local, cumprindo horário, seguindo ordens e metas, mas sem garantia alguma”. Segundo ela, “o mercado não se expande. Em situações econômicas difíceis, ele se retrai preventivamente. A ideia é que duas empresas negociem o valor de um serviço ou projeto, mas, na prática, os trabalhadores acabam assumindo todos os riscos”.
Entre a autonomia e a precarização
Diferentemente de Jean, que encontrou na pejotização uma forma de driblar as exigências do mercado e manter certa autonomia, o publicitário Romeu, 27 anos, já teve experiências formais de estágio. Mesmo assim, foi obrigado a abrir um MEI para continuar na agência em que trabalhava, com remuneração baixa e sem direitos. Ele classifica o modelo como uma “fraude trabalhista”:
— No meu segundo estágio, fui efetivado, mas precisei criar um Microempreendedor Individual (MEI) para continuar. Recebia pouco mais de R$ 1.500 para atender a mais de 10 clientes. Quero muito voltar a ser CLT, mas as vagas assim são raras, principalmente na minha área. A pejotização vem dominando e deixa pouco espaço para contratos formais — conclui Romeu.


Fonte: Pesquisa do Icon Talent, consultoria de Recursos Humanos — baseado nos dados de 320 empresas analisadas em 47 cidades.
Experiências como a dele refletem tendências nacionais. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 32,5 milhões de brasileiros trabalham hoje sem carteira assinada ou como autônomos informais — o equivalente a 31,7% da população ocupada. Desse total, quase 10 milhões atuam formalmente como pessoas jurídicas, número que vem crescendo a cada trimestre.
O movimento também aparece no aumento dos registros de Microempreendedores Individuais (MEIs): o país já ultrapassou 15 milhões de cadastros ativos, o maior número desde a criação da categoria, em 2008. Segundo levantamento da FGV, essa expansão tem um custo coletivo: a pejotização já provocou perda estimada de R$ 89 bilhões em arrecadação pública entre 2018 e 2023.
O cenário também se repete em outros setores, como a tecnologia da informação (TI), onde a pejotização se tornou comum. Tiago Paese Moroni, 22 anos, desenvolvedor de software, trabalhou por cerca de um ano como PJ antes de retornar ao regime CLT. Ele reconhece que o modelo oferece vantagens, mas também expõe fragilidades:
— As maiores dificuldades são a instabilidade do vínculo e a falta de benefícios. Por outro lado, há flexibilidade e impostos reduzidos. A escolha pelo formato PJ foi voluntária, mas também reflexo do mercado. A área de tecnologia tem muitas vagas assim. Na época, não sentia falta dos benefícios da CLT porque recebia férias pagas e participação nos lucros. Hoje, como CLT, percebo o valor de garantias como vale-alimentação e estabilidade — afirma Tiago.
O fenômeno além do Brasil
A pejotização não é um fenômeno exclusivo do Brasil; ela também tem sido observada em outros países, especialmente na Europa. Em nações como Espanha, Portugal, Alemanha e Holanda, existe uma categoria legal conhecida como “trabalhador independente dependente” ou “conta própria dependente”. Essa classificação é destinada a profissionais que atuam como autônomos, mas mantêm uma relação de subordinação com uma única empresa. Nesses casos, os trabalhadores devem contribuir obrigatoriamente para a segurança social, mesmo sem vínculo empregatício formal.
Esses modelos visam equilibrar a flexibilidade do trabalho autônomo com a proteção social, mas também geram debates sobre a linha tênue entre autonomia e precarização, refletindo desafios semelhantes aos enfrentados no Brasil.
STF e o debate jurídico
Em outubro, o STF promoveu uma audiência pública para discutir a legalidade desse modelo de contratação. Durante o encontro, o advogado-geral da União, Jorge Messias, alertou que a pejotização, quando desvirtua a realidade, não gera liberdade, mas sim vulnerabilidade. Segundo ele, muitas empresas usam a flexibilidade como desculpa para transferir riscos e encargos para o trabalhador.
O tema não ficou só no campo jurídico. Motoristas de aplicativos e entregadores saíram às ruas no Dia do Trabalhador para protestar contra a pejotização. Eles destacam as condições precárias e a falta de direitos, como as jornadas longas e intensas. A manifestação evidencia que decisões judiciais não são abstratas, e na prática, impactam o cotidiano e a segurança financeira de milhares de profissionais.
Casos como os de Jean e Romeu mostram como esse dilema afeta toda população. Para ambos, a liberdade de trabalhar como PJ vem junto à insegurança financeira. Essa não é só deles, pois milhares de profissionais se veem obrigados a aceitar condições que comprometem a estabilidade e o bem-estar.
O futuro do trabalho no Brasil está sendo decidido agora, nos tribunais, e a forma como o STF decidir sobre a pejotização terá impactos diretos na vida desses trabalhadores.
*A fonte pediu para não ser identificada nesta reportagem.
Produzido na disciplina Webjornalismo da professora Janaína Kalsing do curso de jornalismo da UCS.


