Pequenas imagens que percorrem lares e comunidades mantêm viva uma tradição de devoção que atravessa gerações
Por Camila de Oliveira
Em meio à correria da rotina, aos passos acelerados e aos toques incessantes dos celulares, a fé ainda encontra refúgio nas capelinhas espalhadas pela Serra Gaúcha. Feitas de pedra, madeira e devoção, elas resistem ao tempo como testemunhas silenciosas de uma espiritualidade que se renova a cada prece. Em cada vela acesa e flor deixada diante de um altar, há gratidão, promessa e esperança, sinais de que, mesmo diante da pressa do mundo, o sagrado continua habitando os gestos simples do cotidiano.
A persistência dessa tradição religiosa é estatisticamente comprovada pelos dados do Censo Demográfico 2022 do IBGE. Na contramão da tendência nacional de queda, o catolicismo mantém forte predominância em Gramado e Canela, contrastando com o cenário do Brasil. Enquanto a proporção de católicos no país é de 56,7%, as cidades da Serra Gaúcha registraram índices superiores: 63,3% da população de Gramado e 64,01% de Canela se declaram católicas.
A presença marcante da fé na Serra Gaúcha não é apenas uma questão de números, mas de história. Como explica o professor de sociologia e teologia, Anderson Cristiano Vaz, o catolicismo chegou junto com a própria formação do Estado.
— Os primeiros colonizadores já traziam essa fé, e mais tarde vieram os imigrantes europeus, principalmente italianos e alemães, que tinham a religião muito presente na vida diária. — aponta.
Segundo ele, a Igreja Católica assumiu um papel que ultrapassava o espiritual. Foi também centro social e cultural: organizava festas, criava escolas, promovia encontros e dava coesão às pequenas comunidades que se formavam. Mesmo com o passar das décadas, a fé segue sendo ponto de encontro, literalmente. Nas comunidades onde as capelinhas ainda circulam de casa em casa, há mais do que oração: há vínculo.
— Quando uma capelinha vai de casa em casa, ela leva junto o sentimento de vizinhança, de cuidado. A pessoa que recebe já sabe que vai passar adiante, então há um ciclo de convivência, de confiança. — destaca.
Mas, se a fé continua viva, a forma de vivê-la mudou. Hoje, as novas gerações têm uma relação mais individual e reflexiva com o sagrado. Antes, as pessoas estavam mais ligadas à Igreja institucional, como ir a missa todo domingo, realizar novenas ou participar de grupos de oração. Hoje há mais autonomia espiritual: as pessoas continuam acreditando, mas buscam a fé do seu jeito.
— O religioso ficou mais íntimo, mais pessoal. — observa o professor.
Essa transformação, porém, não significa distanciamento. Jovens que cresceram em um mundo mais conectado e urbano começam a revisitar antigas tradições, encontrando nelas um novo sentido.
— É diferente, mas não acabou. Muitos jovens procuram espiritualidade, querem entender o porquê das coisas. E há, sim, famílias jovens que voltaram a receber as capelinhas, enxergando nelas uma forma bonita de manter a fé em casa. — afirma.
Para ele, a fé na Serra Gaúcha resiste justamente por saber se adaptar.
— A fé não vai desaparecer, vai se transformar. O que muda são as formas, não o sentimento. A busca por sentido e pertencimento continua. E é isso que mantém viva a espiritualidade do nosso povo. — conclui.
Sete décadas de fé que atravessam portas e gerações

A tradição das Capelinhas de Nossa Senhora em Caxias do Sul teve início em 8 de agosto de 1948, quando a primeira imagem passou a circular entre famílias da Catedral Diocesana. A iniciativa foi organizada por Clélia Manfro, com apoio da primeira zeladora, Miloca Rosa, ambas integrantes do Apostolado da Oração, movimento de leigos católicos voltado à evangelização e à santificação pessoal.
A prática, no entanto, tem origens mais antigas. Surgiu em 1888, na cidade de Guaiaquil, no Equador, com o cônego José Maria Santistevan, que criou a “Visita circulante do Imaculado Coração de Maria”. A devoção se espalhou por diversos continentes e chegou ao Brasil em 1914, em Belo Horizonte (MG).
Em Caxias, Clélia Manfro conheceu a devoção durante visitas à irmã em Curitiba (PR) e, com o aval de Dom José Baréa e do padre Ernesto Brandalise, fundou a primeira capelinha local. Desde então, a prática se expandiu por toda a Diocese de Caxias do Sul.
Na paróquia de Nossa Senhora de Lourdes, o movimento começou em julho de 1953, com a atuação de Paulina Moretto, responsável por organizar as primeiras visitas da capelinha.
Hoje, segundo a coordenadora Maria Inês Fiorio, a paróquia mantém cerca de 120 capelinhas em circulação, divididas entre 12 coordenadoras e dezenas de zeladoras, responsáveis por cuidar, organizar e fazer circular a capelinha dentro da comunidade paroquial.

— É um trabalho de fé e união. As pessoas esperam a capelinha como quem recebe uma visita especial. — conta.
O trabalho das capelinhas segue uma organização comunitária bem definida. Cada zeladora é responsável por uma imagem, cuidando para que ela chegue às famílias da paróquia. Algumas permanecem fixas em prédios, enquanto outras percorrem o bairro de casa em casa, mantendo viva a tradição.
Entre as histórias que acompanham essa devoção, Maria Inês recorda o relato de uma mulher que viu o marido abandonar o vício após receber a visita da imagem. Para ela, a missão junto às capelinhas nasceu de um chamado espiritual.
— Eu nem era muito ligada à Maria, até que o padre Nivaldo me convidou pra ajudar. Foi um puxão de orelha de Nossa Senhora. Desde então, nunca mais deixei. Trabalhar por ela é uma bênção. — revela.
Famílias mantêm viva a tradição das capelinhas

Em um bairro afastado do centro de Gramado, a devoção às capelinhas segue unindo gerações e fortalecendo laços comunitários. Foi diante da distância das rotas tradicionais e do desejo de manter viva uma prática antiga que as famílias de Paula Ghesla, Aline Colorio Stahl e Adélia Moschem Colorio decidiram criar a própria capelinha.
A ideia surgiu há cerca de dois anos, quando perceberam que a capelinha não chegava mais à região. Então, a família se organizou para manter o costume. O projeto foi viabilizado com a ajuda de uma artesã local, responsável pela confecção em madeira. O modelo foi escolhido na internet, pintado à mão e, depois de finalizado, levado à igreja para receber a bênção do padre.
A imagem de Nossa Senhora de Fátima, que ocupa o centro da capelinha, tem valor afetivo especial: foi um presente de aniversário recebido por Adélia e passou a ser símbolo de devoção. Pequenos detalhes também marcam a peça, como uma lembrança de casamento de Aline, colocada junto à imagem, reforçando o caráter familiar e emocional do gesto.
Sem um cronograma fixo, a capelinha percorre as casas conforme o ritmo das famílias. Em algumas ocasiões, permanece uma semana; em outras, um mês. Também organizam a passagem da imagem de acordo com momentos significativos, como aniversários, garantindo que a visita tenha um sentido simbólico para quem a recebe.
— Parece uma segurança quando ela está em casa. É o porto seguro. — diz Paula.

Mais do que uma tradição religiosa, as capelinhas representam um traço da identidade cultural da Serra Gaúcha. Mantidas por famílias, comunidades e paróquias, elas seguem circulando de casa em casa, unindo gerações e fortalecendo laços de vizinhança. Mesmo diante das transformações da vida moderna, a devoção resiste, adaptada a novos ritmos, mas fiel à sua essência. O gesto de acolher a imagem segue lembrando que a fé ainda encontra espaço no cotidiano e continua sendo parte viva da história.
Produzido na disciplina Webjornalismo da professora Janaína Kalsing do curso de jornalismo da UCS.


